No vasto e incessante fluxo da vida moderna, emerge a cultura do consumo, um espectro que transforma o ser em consumidor. Esse processo, muito além do simples ato de adquirir bens, é uma interpelação que captura o indivíduo e o coloca sob o domínio de signos sociais que impregnam sua existência, redefinindo sua relação com o mundo e consigo mesmo. A vida passa a ser estruturada em torno da ideia de consumir e, assim, o consumo torna-se não apenas um comportamento, mas uma condição ontológica — um destino difícil de ser evitado e superado, como se fosse um eco do samsara, o longo ciclo de renascimentos e desejos que aprisiona o ser.
Zygmunt Bauman, em Vida para consumo, nos convida a observar a sociedade moderna como uma liquidez contínua, onde tudo muda rapidamente, e o consumo torna-se uma busca incessante. Esta visão nos lembra os ensinamentos do Buda sobre a insatisfação, que nasce do apego e do desejo. Na cultura consumista, assim como no ciclo de samsara, o ser nunca encontra paz duradoura, pois está sempre em busca de algo novo, sempre à beira de um novo desejo. O Sutra dos Anapana Satis, um dos ensinamentos sobre a meditação da respiração, nos ensina que é na quietude e na presença no momento que podemos libertar a mente dessas correntes invisíveis que nos aprisionam.
Estar à frente: o impulso ilusório
Na visão de Bauman, "estar à frente" é o principal imperativo da sociedade de consumo. As modas, os signos de status, os rituais de compra e exibição não são apenas práticas banais, mas sistemas de controle social que moldam a identidade. Contudo, essa corrida para "estar à frente" é uma ilusão. Assim como no Sutra do Lótus, onde os praticantes são ensinados sobre a futilidade de buscar a felicidade nas aparências externas, a busca constante pelo novo revela-se um ciclo de sofrimento interminável.
A história do homem que perseguia o reflexo da lua na água, acreditando que ali encontraria algo de valor, ilustra bem essa ideia:
Imagine um homem caminhando à noite perto de um lago tranquilo. Quando ele olha para a superfície do lago, vê o reflexo da lua brilhando intensamente na água. Fascinado pela beleza da lua, ele deseja tocá-la e capturá-la. Ele tenta alcançar o reflexo na água, mas cada vez que toca a superfície, o reflexo desaparece. Frustrado, ele tenta diversas vezes, sem sucesso. Eventualmente, ele percebe que o reflexo da lua é apenas uma ilusão e que a lua verdadeira está no céu, inatingível por seus esforços no lago.
Como Bauman aponta, na sociedade de consumo, a busca por estar à frente não leva a um estado de satisfação, mas à perpetuação da angústia. Assim como o homem que tenta capturar a lua no reflexo da água, o consumidor moderno mergulha repetidamente em um ciclo de frustração.
No Sutra do Nirvana, o Buda ensina que a verdadeira liberdade e felicidade vêm da superação do desejo e da aceitação do presente como ele é, sem a necessidade de buscar constantemente algo fora de si. Estar à frente, portanto, não é um estado de progresso, mas uma forma de aprisionamento.
Impermanência e fluidez: a dança do efêmero
Bauman ressalta que o mundo contemporâneo é definido pela impermanência, e a cultura do consumo reflete essa realidade ao glorificar a mudança constante. No entanto, o desejo por estabilidade e permanência, ao mesmo tempo em que se abraça a fluidez, cria uma tensão interna no indivíduo moderno, que sofre ao perceber que tudo é transitório. No Mahaparinirvana Sutra, o Buda fala sobre a impermanência de todas as coisas e como o sofrimento nasce da tentativa de manter o que inevitavelmente se transforma. A sociedade consumista, com sua contínua reinvenção de modas e tendências, é o espelho perfeito dessa verdade: o novo logo envelhece, o desejado logo se torna obsoleto.
Anthony Giddens, em Modernidade e Identidade, ao falar sobre a modernidade reflexiva, reforça a ideia de que o "eu" deve constantemente se reconfigurar em resposta às mudanças externas, o que gera ansiedade e incerteza. Isso ecoa o ensinamento do Sutra do Discurso do Grande Esforço, que nos guia a uma vigilância constante sobre a mente e o corpo, ensinando-nos a observar as mudanças internas e externas sem apego. A impermanência é uma verdade inevitável, e aceitá-la é o caminho para a libertação, enquanto a resistência a ela só gera dor.
Assim como o Buda advertiu seus discípulos sobre a impermanência, Bauman nos lembra que o "self" na sociedade de consumo está em constante adaptação, tentando desesperadamente manter-se relevante em um mundo que não para de mudar. Porém, assim como no budismo, onde a compreensão da impermanência é o primeiro passo para a iluminação, a sociedade moderna pode encontrar uma saída no reconhecimento dessa realidade.
O paradoxo da escolha: a liberdade ilusória
Na cultura do consumo, a multiplicidade de escolhas é vista como um símbolo de liberdade. No entanto, Bauman nos alerta que essa liberdade é uma armadilha. A cada escolha, o indivíduo se vê mais profundamente preso ao ciclo de consumo, onde a verdadeira autonomia é substituída por uma escravidão disfarçada. Aqui, o ensinamento do Avatamsaka Sutra nos oferece uma visão budista análoga, onde o Buda fala da multiplicidade de fenômenos como uma rede de ilusões que captura a mente dos seres. O desejo de possuir ou controlar, seja através da aquisição de bens ou da tentativa de criar uma identidade baseada no consumo, é uma forma sutil de escravidão.
Erich Fromm, em O Medo à Liberdade, discute como a liberdade sem direção ou propósito leva à alienação. No contexto da sociedade de consumo, essa alienação se manifesta na incapacidade do indivíduo de encontrar uma satisfação duradoura. As escolhas que fazemos, muitas vezes ditadas por forças externas, não são escolhas genuínas, mas respostas automáticas a pressões culturais. Assim como o Sutra dos Sete Fatores da Iluminação nos ensina a desenvolver discernimento e vigilância, é necessário observar nossas escolhas com sabedoria, reconhecendo quando elas são autênticas e quando são ilusórias.
No mundo consumista, a escolha se apresenta como liberdade, mas é uma liberdade condicionada. O Buda nos ensinou que a verdadeira liberdade vem do abandono do desejo. Enquanto estivermos presos ao ciclo de consumo, estaremos sempre sujeitos a um sofrimento constante.
Vigilância incessante: o consumo como armadilha
Bauman observa que a cultura de consumo exige vigilância constante. Estar atento ao novo, ao que está por vir, é uma necessidade para não ser excluído. Assim como no Sutra do Leão, onde o Buda nos fala sobre a natureza indomável da mente, a sociedade de consumo nos mantém em constante agitação, sem permitir descanso ou paz. No entanto, a solução para esse estado de alerta perpétuo está no aprendizado da pausa, da meditação.
O Satipatthana Sutta nos ensina a prática da plena atenção e da vigilância consciente, que difere da vigilância do consumidor. Enquanto este último é um estado de alerta ansioso, preocupado em não perder o próximo produto ou tendência, a vigilância budista é a prática da quietude e da observação interior. Quando cultivamos a plena atenção, somos capazes de perceber a futilidade das armadilhas externas e encontramos a paz no desapego.
O despertar para além do consumo
Enfim: a reflexão de Bauman e de outros pensadores nos mostra que a sociedade de consumo nos coloca em um ciclo incessante de insatisfação, onde o novo é sempre efêmero e o desejo nunca é satisfeito. Assim como o Buda nos ensinou, o caminho para a verdadeira liberdade não está em adquirir mais, mas em desejar menos. A vida consumista, com seus imperativos e demandas, nos afasta do verdadeiro significado da existência. O Sutra do Prajna Paramita nos ensina que a sabedoria suprema não reside no material, mas na compreensão profunda da natureza vazia de todas as coisas.
A cultura de consumo nos chama a estar sempre à frente, mas o despertar espiritual nos lembra de que a verdadeira realização está em nos aquietarmos, abandonando o ciclo incessante do desejo. Ao entender a vacuidade e a impermanência, podemos trilhar o caminho para além do consumo e encontrar a paz interior.
Bibliografia
- Bauman, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
- Baudrillard, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
- Giddens, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
- Fromm, Erich. O Medo à Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
- Mahaparinirvana Sutra.
- Sutra do Lótus.
- Avatamsaka Sutra.
- Anapana Satis Sutra.
- Satipatthana Sutta.
Excelente texto, parabéns. Conduz à reflexão.